quarta-feira, maio 27, 2009

Cereja

Há dias péssimos. Há outros menos bons. Há ainda aqueles que são banalíssimos. Mas felizmente há também aqueles a que podemos chamar de perfeitos.
Há dias em que nos levantamos a irradiar felicidade. Em que todo o mínimo gesto ou movimento que fazemos sai sempre conforme o planeado. Conseguimos ser felizes com os outros. Com alguns outros. Rimos e brincamos. Dispensamos por completo o trabalho e temos o prazer de gozar o dia inteiro na maior das despreocupações. Ainda bem que há dias assim. Dias em que, para além de tudo correr bem, podemo-nos ainda gabar de ter vencido algumas guerras bem pessoais. Aquelas guerras tão nossas e que se discutem ao pormenor. A nossa felicidade às vezes também passa pela desgraça e miséria dos outros. E não tenho medo de dizer que sabe bem. Sabe bem porque nós estamos bem. Mesmo que seja com o mal dos outros. E nestes dias perfeitos é óptimo ver e sentir que fomos capazes de estragar o dia a alguém que simplesmente já o andava a merecer há algum tempo. É a cereja no topo do bolo.

quarta-feira, maio 20, 2009

Julgamento

Não me julguem pelo que vocês julgam que sabem. Julguem-me antes quando souberem aquilo que eu sei.

domingo, maio 10, 2009

Tarde

Nunca te conheci. Não consigo sequer imaginar como serias. Loiro ou moreno. Alto ou baixinho. Gorducho ou trinca-espinhas. Sei no entanto que eras um pequeno rapazinho como muitos outros que não viveram o que tu viveste. Certamente brincarias durante quase todo o dia. Com os teus pais, irmãos e avós à tua volta. Serias provavelmente muito feliz na tua ingenuidade própria de criança. Viverias numa vida que para ti era eterna e sem perigos, repleta de sonhos e momentos únicos e insignificantes para quem não tinha o teu tempo e habilidade para lhes dar significado.
Um dia essa tua vontade infinita de descobrir não te aconselhou devidamente. A tua curiosidade desmedida por querer conhecer um mundo enorme em meros segundos deixou-te escorregar. Talvez quisesses apanhar o teu próprio reflexo. Ou fosses em busca de um brinquedo que deixaras cair. Ou simplesmente estivesses fascinadamente vidrado nos pequenos movimentos da água quando o vento a beijava à superfície. Independentemente do motivo, a verdade é que mergulhaste. Mergulhaste na água demasiado profunda, extensa e pesada para que dela te conseguisses desembaraçar. Se calhar nem deste por nada. Nem tu nem mais ninguém que estivesse por perto. Se calhar foste ao fundo, na mais honesta das calmas, puxado pelo peso das tuas roupas coloridas e cheias de bonecos. Camisas-de-forças que acabaram por te prender irremediavelmente, sem hipótese de saída.
Quando te acharam, estranhando o teu silêncio, já lá estavas há demasiado tempo. Pouco tempo, mas demasiado. Descobrindo forças e rapidez que desconheciam neles próprios, trouxeram-te à tona completamente ensopado. Estavas pálido. Branco de morte e com os lábios roxos, frios e inertes. Nem conseguias ouvir os gritos, os choros e toda a restante azáfama à tua volta. Mas o teu coração ainda batia timidamente e a tua respiração, ainda que superficial, tentava aspirar a vida à tua volta para dentro do teu corpo. Esporadicamente contorcias-te todo, de uma forma horrendamente anárquica, levando os teus braços e pernas a serem projectados sem sentido e na direcção que bem entendiam. Agarravam-te com medo que fugisses. E tu não eras diferente: também tu te tentavas agarrar, embora não sabendo bem ao quê.
O tempo passava de uma forma demasiadamente sonolenta e sussurrada, como se teimasse em arrastar-se sem pressa alguma. No entanto, foi num ápice que voaste e galgaste quilómetros em busca do teu elixir da vida eterna. Os vultos brancos rodopiavam à tua volta, num rodopio de sombras, vozes e acções muitas vezes mecanizadas e conscientemente desconsciencializadas. Análises, sangue, agulhas, oxigénio, tensão arterial, temperatura, ... Não respondias a ninguém. Gostarias certamente de gritar por ajuda, de pôr cá fora a dor que tinhas dentro de ti. Mas estavas já preso dentro da tua própria cabeça. Médicos, macas, enfermeiros, camas, ... Naquela sala só tu ainda eras nítido. Estático no meio de imagens constantemente desfocadas à tua beira, como uma fotografia que não consegue focar o objecto astuto que se mexe sem se deixar eternizar.
Nunca te conheci. Não consigo imaginar sequer como serias. No entanto sei que devias ser forte e teimoso. À medida que passo as folhas deste monte, todas com o teu nome, vejo a tua luta incessante e injusta. Vejo o trapo em que chegaste, incapaz de chorar aquela última lágrima ardente e dolorosa. Os números das inúmeras quantidades de líquidos e medicamentos que te correram nas veias correm-me à frente dos olhos. Uns atrás dos outros, adicionando-se regradamente página após página. Melhoras discretamente. Ainda aí estás. Agora é uma máquina que respira por ti. Que te enche os pulmões de alimento e a mente dos outros de esperança. Mas estás demasiado parado. O rodopio não pára, agora mais sub-reptício e tremendamente silencioso. Tens tubos por todo o lado. No nariz, na boca, nos braços. Aparelhos electrónicos que registam e regulam todo o resquício de vida que ainda te resta. Barulhos monótonos e apitos repetidamente iguais. Luzes perdidas na escuridão do quarto, reflectindo no teu corpo despido. De vestes e de quase tudo.
Passo a página. A última. Não acho que tenhas desistido. Talvez tenhas ficado sem forças. Estavas a afogar-te vertiginosamente na água que inundava os teus pulmões. Já nada te servia e tratava. Tudo o que te era dado era insuficiente. Eram só desesperos. Estavas a ser destruído aos poucos por dentro, como se tivesses engolido uma comida mesquinha que te rasga devagar como quem quer magoar. Todos os órgãos falhavam. Um a seguir ao outro. Por mais que alguém te puxasse para cá, tu já não vinhas. Nem conseguirias vir se tu próprio tivesses a força do mundo. Do teu antigo mundo.
As palavras na folha continuavam em catadupa. Numa sequência negra e com fim óbvio. Linha após linha desaparecias fugazmente. Não deviam ser dados desafios destes a pequenas crianças como tu. Desafios perdidos à partida. Mesmo quando jogados com a ajuda de tanta gente como a que te tentou ajudar. Que tentavam como se fossem eles próprios. Como se também fossem eles. Como se também fosses deles. Mas já era tarde. Muito tarde. Tarde no relógio e tarde para ti. Tinha acabado. Tu tinhas acabado.

Time of death....