terça-feira, março 29, 2011

Metro

Gare do Oriente. É cedo. É pelo menos cedo para mim que não devia por aqui andar a estas horas. 8:32 marca um daqueles letreiros electrónicos que estão constantemente a emitir mensagens de interesse duvidoso ao sabor do piscar de vários LEDs laranjas. "O Metro não funcionará amanhã das 6:00 às 11:30" passa agora a correr como que largando uma bomba que se deseja que ninguém veja só para que fique com a manhã do dia seguinte toda virada do avesso. Apesar de ser um mero dia de semana, poucas pessoas hoje se encontram a circular nestes acessos subterrâneos, talvez fruto das férias de Verão para as quais a crise deveria roubar dinheiro, mas que acabam sempre passadas em praias paradisíacas num país latino de um continente além-Atlântico.
Felizmente não preciso de me preocupar com o bilhete. Vantagens e mordomias dos pré-comprados. Sempre se evitam as filas para a única máquina que existe a funcionar pois as outras, cheias de chico-espertice, parecem arranjar todas as desculpas para ficarem não-operacionais. Avarias, falta de troco, cartões electrónicos não aceites ou então só porque sim. Ou porque não. Devem-se combinar entre elas e montam escalas de turnos para se irem mantendo jovens e imaculadas. E para moer a já pouca paciência de quem (des)espera, para o qual também contribuem a declarada azelhice de muitos transeuntes e a sagaz vontade de nunca quererem aprender a funcionar com as malfadadas maquinetas. O que vale é que existem sempre funcionários imensamente disponíveis para ficar sentados atrás de um qualquer balcão a rir da inoperância alheia enquanto os seus roliços traseiros engordam enfiados num recosto fofinho que não existe disponível para mais nenhum.
Torniquetes. Passa-se o bilhete e voilá. Abre-te sésamo. Por vezes é preciso quase ter aptidões atléticas olímpicas para transpor tal barreira, tamanha não é a necessidade de coordenação para fazer passar toda a bagagem no (curto) espaço de tempo em que as portas se tornam permeáveis. E ficar lá entalado? Um regozijo só recomendável para os outros porque dói e incomoda que se farta.
Aguardo. Encosto-me a uma parede com medo que algum de nós (eu e a parede) caia. Bocejo. Ainda tenho sono. Diz agora o painel que faltam 4 minutos e 51 segundos para as metálicas carruagens terminarem a manobra de troca de linha e recomeçarem o percurso que já conhecem como a palma dos seus carris. Os passageiros acumulam-se junto à linha, numa amálgama de diversidade que se torna homogénea graças à pouco dissipada apatia e ausência de interacção que este tipo de transportes colectivos sempre acarreta. O som aproxima-se. Apita a avisar da chegada como se o rosnar constante do vento a ser arrancado não chegasse para o anunciar. Ainda antes de parar, já todos se aglomeraram à beira do local onde julgam que a porta se abrirá. E desengane-se quem pense que se trata de um acto aleatório, pois facilmente se reconhecem os profissionais desta actividade ao se comprovar a sua perícia milimétrica.
Já lá dentro, o importante é encontrar um buraquinho para nos sentarmos, embora seja sempre preferível deixar passar aquelas velhas vizinhas (ou vizinhas velhas) com dois, três, quatro ou mais sacos com um mundo de cheio de nada no seu interior. Parecem formigas atarefadas em busca do lugar que julgam eternamente seu e para o qual ninguém tem sequer permissão de colocar a mirada em cima. Ao longe já oiço o inconfundível som de um acordeão, surpreendentemente tocado com alguma mestria. Em cima do instrumento que o jovem carrega, equilibra-se um pequeno cachorrinho com o fundo de uma garrafa de plástico para que nele se coloquem moedas de esmola. Não sei por quem tenho mais compaixão. Se do indefeso animal que passa o dia inteiro com um fio entre os dentes a segurar pedaços de metal dentro de um recipiente ou da ainda ingénua (ou se calhar não) criança que dá azo ao seu dom para alimentar vícios dos pais que a exploram...
Enquanto as vizinhas trocam agora impressões sobre as modas actuais das relações amorosas dos seres humanos (que confusão lhes faz os "ajuntamentos" sem casamento e aquela coisa nova dos "homem-sexuais"), um jovem parzinho de namorados enrosca as mãos e troca sorrisos de quem acabou de descobrir o quão bem sabe uma brutal descarga hormonal logo pela manhã. Trocam palavras e frases muitas vezes sem nexo para alguns ouvintes incautos, partilham beijos e outras carícias a cargo de uma ou outra mão que afagam carinhosamente as faces da sua outra metade. Ele, mais alto que ela, dá-lhe o ombro para que ela encoste a cabeça e se aninhe no pescoço dele, sentindo-se protegida de perigos que agora não existem mas que a conforta mesmo assim. "É favor não forçar as portas!". Certamente alguém mais voluntarioso que se atirou já após os silvos sonoros que indicam o fecho iminente das portas e que deixou uma mochila ou um pé presos entre elas.
Ao fundo, sozinho, um homem de meia-idade. Olha impacientemente para o relógio, alternando com movimentos desinquietantes no telemóvel. Obviamente espera por algo ou está atrasado para alguma coisa. Se calhar as duas. O eterno Português vive sempre na ânsia de concretizar sonhos e na sofreguidão de nunca chegar a tempo de os atingir. Escorrem-lhe gotas de suor pela testa. Semblante fechado. As vizinhas dão por ele. Murmuram um sussurro imperceptível, mas que ele percebe ser para ele. Cora. Atrapalha-se. Deixa cair o telemóvel quando de repente começa a vibrar nas suas mãos. Apressa-se a apanhá-lo e lê o que o ecrã lhe escrevinha. Sorri. Levanta-se e sai na próxima estação. Haja dias felizes para alguém.
"São Sebastião. Estação Terminal". Mesmo que não quisesse, é aqui que tenho que sair. Fim de linha. Literalmente. Mais uma vez, dou por mim a ser atropelado pelas ágeis velhas vizinhas, a quem somente interessa exercitar a língua e os belos braços que derriçam com força que aqueles singelos corpos parecem não ter. Deixo-as sair. "Take care of your belongings when entering or exiting the train". Instintivamente as vizinhas olham para as suas malas e remexem-lhes o interior, assegurando-se que têm tudo consigo. Mal sabem elas que esse é somente o primeiro sinal para denunciar o local onde guardam aquilo que de maior valor transportam consigo... Quando me aproximo do torniquete, um jovem algo tímido aborda-me e pergunta-me num tom pianíssimo: "Posso passar atrás de si?". Enquanto lhe aceno afirmativamente, esboço uma expressão alegre de condescendência por todos aqueles (incluindo eu próprio) que, com a idade daquele rapaz, também alguma vez ousaram fazer gazeta aos bilhetes dos transportes públicos. É talvez um dos primeiros actos de rebeldia de muitos dos adultos de hoje.
Subo as escadas e saio para a rua. Doem-me os olhos. Não vejo nada. Está sol lá fora.