segunda-feira, fevereiro 05, 2007

O meu mundo

O meu mundo começa no meu quarto. No sítio onde tenho as minhas coisas arrumadas como eu quero. No sítio onde eu próprio me arrumo comodamente. É aqui que eu vivo e que a minha vida ganha vida. Livros, puzzles, espelhos... Tenho aqui tudo. Mas aquilo que guardo com mais afinco é a minha caixa de sapatos cheia de areia e areias. Areias que um dia foram pedrinhas. Pedrinhas que fizeram parte de enormes rochedos.
Gosto de, solenemente, abrir a tampa da caixa feita de cartão. Cartão muito pesado. Gosto de depois olhar lá para dentro e agarrar naquele pedaço de matéria que não é mais do que a suficiente para me encher uma mão fechada. Mão essa que com toda a raiva cuidadosa espalho ao longo do meu mar. Aquele que é feroz e se levanta gigantescamente sobre o imenso areal de quilómetros que eu acabo de estender. É nesse manto de grãos que ando muitas vezes. Descalço. Deixando os meus pés marcados na fusão de água e calhaus minúsculos do meu tamanho, que o próprio líquido se encarrega de apagar ou recolher, na ânsia de queimar a saudade que virá até que um novo pé se decalque. Aqui sinto gotas de oceano a espetarem-se na minha pele. Frias e aguçadas como... gotas de oceano. Que me rasgam o corpo. E que tão bem me fazem sentir...
Muitas vezes recolho-me na base de falésias enormes. Daquelas que tendem verticalmente para cima. Para um lugar onde, cá de baixo, vejo mãos e braços que me acenam e que se esticam na minha direcção. Membros que eu tento freneticamente agarrar, como se tivesse medo que o meu próprio mar me afogasse. Membros que eu de facto consigo agarrar, sempre com algum critério que às vezes eu próprio desconheço: mais robustos, mais despidos, mais básicos. Membros que penso agarrarem-me suspenso enquanto eu precisar de arranjar forças para eu próprio acabar de subir o que falta. Membros que por vezes me largam sem se preocuparem se caio de costas num colchão de penas ou numa estalagmite de ferro. Se sobrevivo ou me desfaço.
No topo da arriba, passeio no meu bosque. Por entre as minhas árvores. Sobre as minhas folhas. Debaixo dos meus ramos. Ombreio com troncos grossos que o meu corpo não abraça, tropeço nas suas raízes que os meus pés não reconhecem e esgueiro-me na escuridão que as suas copas impedem de ser penetrada brutalmente por qualquer fio de luz. E por onde quer que vá, é sempre à minha clareira que chego. Uma clareira escura. Preta. Onde não há bosque, nem árvores, nem folhas, nem raízes, nem ramos. Só terra. Molhada. Vazia. Infinita. Onde jaz uma sepultura. A sepultura das minhas coisas. A minha sepultura. Onde eu choro e recordo tudo o que enterrei. Onde talvez durma mais leve e mais acompanhado. Onde me (re)visito e me (re)completo.
À noite, quando volto, sei as ruas que dizem para eu percorrer. As ruas que eu não percorro. Atalho pelo caminho maior. Aquele que é estreito e ladeado por imensos edifícios enormes sem janelas. Edifícios sobre os quais eu ando e que cedem sempre ao meu peso. Que colapsam para dentro sob mim. Admiro os cartazes de publicidade, para mim sempre lunarmente brancos. Preenchidos à minha maneira para que me possam absorver para o seu interior, ganhando vida ao sabor do que me apetece. Sigo as vias com sinais proibidos. Não paro nos STOP's. Sigo contra o sentido de prioridade. Ignoro as passadeiras. Simplesmente faço os meus sinais e o meu trânsito. E é assim que chego com segurança, de novo, ao meu quarto. No sítio onde tenho as minhas coisas arrumadas como eu quero. No sítio onde eu próprio me vejo chegar comodamente.
Este é o meu mundo. Este sou eu.

2 comentários:

Balthus disse...

Por mais negro, por mais gutural, por mais anti-senso que possa ser, o retrato da nossa identidade é sempre uma obra-prima:)

Marco Aurélio Alves disse...

Espetacular...