Sei porque voaste. Sei porque abriste as asas e tentaste fugir do teu recanto. Julgaste que, lá longe, deixarias os vultos escuros que te assombram bem distantes de ti.
Quando lá chegaste, não encontraste o conforto que buscavas. Não identificaste alguma diferença em relação ao que havias deixado, mesmo quando invocaste anjos brancos de envergadura larga para te proteger. Enganaste-te. Quando lá chegaste, já lá eles estavam à tua espera. Era como se os vultos escuros tivessem adivinhado o teu destino predestinado só para te penitenciar quando arquitectaste aquele que sabias ser o teu derradeiro plano de escape.
Mesmo lá longe, são esses vultos escuros que se mantêm bem pertinho, circundando-te de forma sorrateira e abafante, gelando o vapor de água que expiras e fazendo-o cair como farpas nos teus próprios pés. São eles que te fazem companhia nas noites em que a tua pessoa está abandonada e implacavelmente vergada debaixo dos lençóis de uma cama que não te embala. São eles que te amarelam o sorriso quando, por fugazes momentos, foges da realidade e eles rompem pelo teu pensamento lentificadamente apagado e quase morto. São eles que te tiram o gozo da mais pequena alegria que achas ser capaz de alcançar quando de forma sarcástica eles te dão a sensação de estares livre. São eles que te toldam a imagem quando alguém olha para ti através dos teus olhos verdadeiramente vazios e que eles não te deixam voltar a encher. São eles que apagam as luzes da rua quando caminhas sem destino entre casas a dormir e te fundem com o nada da escuridão que preenche o ar. São eles que te geram essa dor ardentemente agonizante quando te crucificam de forma invertida perante todos os pecados cujo teu corpo não consegue esconder atrás de si. São eles que te assassinam os sonhos e fazem brotar pesadelos que conheces como reais, só para de seguida acordares num sobressalto e tomares consciência de que não há diferença entre o sono e a vigília. São eles que fazem a tua sombra que não obedece aos mandamentos do teu corpo e jocosamente enganam os teus sentidos, criando sons, imagens, sabores, cheiros e objectos que te conduzem à insanidade louca de onde não te consegues libertar. São eles que não se espantam quando gritas em surdina o que se evapora da tua alma quando por fim cedes em desamparo perante a incapacidade de expressares a mínimo esboço de vontade própria.
Por mais que tentes, não consegues cavar um fosso onde os enterres ou que os impeça de te alcançar. Porque esses vultos escuros não vivem contigo. Eles vivem em ti. Em tudo o que és. Estão entranhados em tudo o que é vida em ti e em tudo o que é morte que causas. E só desaparecerão quando também tu te eclipsares.
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