quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Praça

Era um dia qualquer... em meados dum mês de Inverno cujo ano já não me lembro. Nem eu nem ninguém. Devia ser de manhã. Ou de tarde. Mas para que é que isso interessa? Sentado numa daquelas cadeiras velhas de madeira, que rangem como se fossem partir, ele olhava lá para fora através das vidraças da sua janela. Umas partidas ou rachadas, outras sujas que nem carvão e outras ainda que já não existiam, deixando entrar o frio gelado e aquele sol tão quentinho e tímido, que se consegue esgueirar entre as nuvens carregadas que se passeiam no ar.
Lá fora era quase tudo branco. Branco de neve pura acabada de cair sobre tudo o que havia naquela linda praça da aldeia. Só se vislumbrava um branco fofo e aconchegante, excepto nas cabeças, mãos e corpos de duas crianças que, vestidas a rigor com as cores mais alegres que existem, se divertiam como se fosse a primeira vez que presenciassem tal espectáculo (é essa uma das maravilhas de se ser criança: é sempre a primeira vez para tudo, por mais vezes que a repitamos). Bola para cá, bola para lá. Umas que voavam para lá do alcance da sua visão, outras que atingiam em cheio o alvo. Perto de tanta agitação, o banco onde se costumava sentar, todas as tardes, a ler o jornal e a olhar, nunca soube bem para onde. Simplesmente olhava. Decorava cada pormenor daquela paisagem monótona mas tremendamente perfeita. E à noite, quando recolhia, sabia que tinha feito a viagem da sua vida, sem nunca se ter mexido. E assim viajava todos os dias.
Um pardal passara à sua frente, do lado de fora, despertando-o. Seguira-o até uma pedra do lago agora de gelo. Pousado nela dava pulinhos para se manter quente. Será? Que mania inquietante do Homem em tentar perceber o que os animais pensam ou fazem... Salta e pronto. Não é mais bonito vê-lo simplesmente pular, sem mais nada?
Hoje não era possível adivinhar onde passava a estrada daquela pedra granítica brilhante, aos cubos, da qual toda a gente de fora refilava por arruinar aquelas máquinas a que chamam carros. Ele sabia perfeitamente onde ela se encontrava. Sabia-o desde o dia em que, na sua eterna companheira de duas rodas, foi obrigado a tirar os pés dos pedais e atirar-se direitinho a ela para não passar por cima do gato amarelo da praça. O gato que ele carinhosamente cumprimentava todos os dias com uma festa de inveja. Inveja de ser como ele, de poder ser mais livre, ir onde quisesse sem dar satisfações. Ir. Era irritante ter que ver aquele animal tão livre e tão belo (coisas que nunca foi). Mas era tão reconfortante senti-lo a roçar nas suas pernas quando mais ninguém para ele olhava. Acima de tudo, e apesar de o odiar de certa maneira, amava-o. E fazia-o de uma forma tão pura como não fora capaz de fazer por nenhuma pessoa. Porque, e disso tinha a certeza, aquele animal nunca o magoara e jamais o iria fazer.
O centenário carvalho da praça, no qual ele, o seu pai, o seu avô e sabe-se lá mais quem, andaram no baloiço (que ainda hoje lá se encontrava), começara há pouco tempo a ganhar os primeiros rebentos, quase como se ressuscitasse da morte em que parecia ter enveredado. O baloiço, esse, era já um ramo da própria árvore. Quase como que um velho que acolhe uma pequena criança para que possa sentir perto dele toda a festa que caracteriza o petiz. E o coreto... Como se poderia esquecer do coreto? O sítio onde sempre tocara na banda, fazendo as pessoas soltar aplausos que tanto o reconfortavam. Que lhe despertavam aquele arrepio só ao alcance dos que se fundem com o instrumento e que chegam com ele ao céu. O coreto, atrás do qual se escondia quando brincava às escondidas com os amigos. Esconderijo que só ele conhecia e no qual nunca ninguém o achou. Ganhava sempre. E gostava de o fazer.
Muitas crianças passaram naquela praça. Conhecia-as todas, viu-as crescer, partir, desaparecer. Riu e chorou com muitas das travessuras que pequenos e graúdos fizeram à frente da sua janela, principalmente em dias como aquele... Lá em cima, o sol fugira. Inclinou-se para olhar um pouco melhor e ver o primeiro floco de neve que descia triunfalmente sobre a praça já deserta. As crianças, já encharcadas, haviam voltado a pedido das preocupadas e zelosas mães. O pardal esvoaçara dali. Não sabia para onde nem tal facto lhe interessava. Até o próprio baloiço, que até há instantes atrás gingava ao sabor da brisa que corria, decidiu parar para que se visse começar a nevar de novo. De repente, atrás do coreto, surgiu o seu gato amarelo. Despreocupado, deu uma corrida decidida e foi-se sentar no banco onde tantas vezes fora acariciado. Virou-se para a janela. Ao vê-lo no seu banco e relembrar aquele cenário no qual participara durante tantos anos, ele sorriu por trás das vidraças. Cansado, mas ainda a sorrir, fechou os olhos.

E foi nesse dia qualquer, em meados de um mês de Inverno cujo ano já não me lembro, atrás da sua vidraça que dava para a sua praça com todas as suas coisas, e sentado na sua cadeira de madeira que rangia, que ele fechou os olhos alegremente. E não mais os abriu.

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