segunda-feira, novembro 19, 2007

Zombie

Não te vi a ir embora, embora saiba que foste. Sei que dormias debaixo do teu cobertor de ervas verdes, vivas. Sob a tua almofada branca de mármore, sofridamente rabiscada a preto. Eu sei. Eu sei que estavas lá. Ao meu lado. Na tua cama. No local onde descansavas os teus incólumes pedaços. Pedaços plenos de vida, cobertos por sôfregas cores em mil milagres.
Eu sabia que estavas lá. Por isso não podias. Não podias ser tu. Não eras tu, aquele ser vivo morto. Aquela sombra de gente, húmida, podre, de roupas andrajosas e movimentos atáxicos mas decididos. Não eras tu. Não podias ser tu. Não queria que fosses tu... Mas eras.
Eras deveras tu. Reconhecia-te nos mais pequenos pormenores que ainda ousavam sobreviver ao tempo. Estavas como sempre o teu feitio dizia que devias estar. Ciente de ti e das tuas capacidades. E era com essas crenças que avançavas sem qualquer tipo de temor. Com um objectivo. Em direcção a um alvo. Muito específico.
Os canos serrados tinham-te ao alcance. E não hesitaram. A primeira nuvem de chumbos levou-te uma metade completa da face. Tirou-te a visão e cegaste aí por completo, como se por alguma ligação misteriosa as pequenas esferas tivessem viajado também para o outro olho. Tirou-te o sabor. O sabor que agora seria do teu próprio sangue. Seco, coagulado. Mas sangue. Tirou-te o olfacto com que cheirarias o perigo como era teu hábito.
Mesmo com a cara completamente exposta, seguiste impávida. A segunda rajada foi-te menos generosa. A tua anca voou sem direcção, arrancando um enorme pedaço da pouca carne que ainda sustinha. Caíste como um cepo seco e oco. Rodaste ligeiramente no ar. Esticaste o braço para alcançar um apoio que nunca existiu. Aterraste e levantaste um monte de poeira que te cegou mais, se tal fosse ainda possível. Mas não era isso que te ia deter.
Arrastavas-te agora quase com os vasos esvaídos de dignidade. Mas não de perseverança. Demoraste, mas chegaste aos seus pés. Percebi que reconhecias aquelas solas. Bem demais. Mas isso não contava. Um dos pés prendeu-te a mão que o tentava abraçar. Olhaste para cima. Chorarias se conseguisses. Se tivesses força para o fazer. Pediste algo sabendo de antemão a resposta. A resposta que veio na ponta da arma, agora flectida para baixo. Eu não quis ver. Mas ouvi. Urraste no silêncio do teu interior. Bradaste já sem ar nos pulmões. Uivaste pela última vez... outra vez.
Quando voltei a voltar-me para ti, acedi a aproximar-me. Eu sabia o que ia ver. A tua mão escrita pelo sapato que te pulverizou os ossos. O crânio incompleto, vazio de tudo e cheio de nada. Eclipsado de esperança. A perna ainda presa a um tendão persistente e velho. Como querendo não se perder do conjunto que já não existia. E lá estava ele. O sufoco do último sopro. Do derradeiro impulso. Um buraco negro. Profundo. Trespassante. De um lado ao outro. Nas costas. Por trás do coração. Que desaparecera por completo. Em cinzas.
Foi por isto que te reergueste? Para que te ferissem de morte o coração, pelas tuas costas? Eu sei que não era o que querias. No meu pensamento pinto a tua cara que agora beija o chão. Não podia ser mais expressiva a sua ausência de expressão. Nem um zombie merece acabar assim.

1 comentário:

Anónimo disse...

ah.. compaixao. saber onde doi. e porque raio vai doer.
*m