terça-feira, fevereiro 28, 2006

Para baixo

Há coisas que estão destinadas a acontecer. E se o estão, uma coisa é certa: vão acontecer mesmo. Os pequenos pormenores que podem escapar ao olho mais distraído, são sempre a resposta para estes fados. Não se queixem. Foram vocês os culpados. Foram vocês que criaram os pormenores. E que os continuam a recriar, dia após dia, ininterruptamente. Todas as pessoas o vêem. Todas as pessoas o comentam.
Por isso não se preocupem. Não falta muito para que este barco, embora de vime, se parta em dois. E aí só há um caminho. Para baixo.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Praça

Era um dia qualquer... em meados dum mês de Inverno cujo ano já não me lembro. Nem eu nem ninguém. Devia ser de manhã. Ou de tarde. Mas para que é que isso interessa? Sentado numa daquelas cadeiras velhas de madeira, que rangem como se fossem partir, ele olhava lá para fora através das vidraças da sua janela. Umas partidas ou rachadas, outras sujas que nem carvão e outras ainda que já não existiam, deixando entrar o frio gelado e aquele sol tão quentinho e tímido, que se consegue esgueirar entre as nuvens carregadas que se passeiam no ar.
Lá fora era quase tudo branco. Branco de neve pura acabada de cair sobre tudo o que havia naquela linda praça da aldeia. Só se vislumbrava um branco fofo e aconchegante, excepto nas cabeças, mãos e corpos de duas crianças que, vestidas a rigor com as cores mais alegres que existem, se divertiam como se fosse a primeira vez que presenciassem tal espectáculo (é essa uma das maravilhas de se ser criança: é sempre a primeira vez para tudo, por mais vezes que a repitamos). Bola para cá, bola para lá. Umas que voavam para lá do alcance da sua visão, outras que atingiam em cheio o alvo. Perto de tanta agitação, o banco onde se costumava sentar, todas as tardes, a ler o jornal e a olhar, nunca soube bem para onde. Simplesmente olhava. Decorava cada pormenor daquela paisagem monótona mas tremendamente perfeita. E à noite, quando recolhia, sabia que tinha feito a viagem da sua vida, sem nunca se ter mexido. E assim viajava todos os dias.
Um pardal passara à sua frente, do lado de fora, despertando-o. Seguira-o até uma pedra do lago agora de gelo. Pousado nela dava pulinhos para se manter quente. Será? Que mania inquietante do Homem em tentar perceber o que os animais pensam ou fazem... Salta e pronto. Não é mais bonito vê-lo simplesmente pular, sem mais nada?
Hoje não era possível adivinhar onde passava a estrada daquela pedra granítica brilhante, aos cubos, da qual toda a gente de fora refilava por arruinar aquelas máquinas a que chamam carros. Ele sabia perfeitamente onde ela se encontrava. Sabia-o desde o dia em que, na sua eterna companheira de duas rodas, foi obrigado a tirar os pés dos pedais e atirar-se direitinho a ela para não passar por cima do gato amarelo da praça. O gato que ele carinhosamente cumprimentava todos os dias com uma festa de inveja. Inveja de ser como ele, de poder ser mais livre, ir onde quisesse sem dar satisfações. Ir. Era irritante ter que ver aquele animal tão livre e tão belo (coisas que nunca foi). Mas era tão reconfortante senti-lo a roçar nas suas pernas quando mais ninguém para ele olhava. Acima de tudo, e apesar de o odiar de certa maneira, amava-o. E fazia-o de uma forma tão pura como não fora capaz de fazer por nenhuma pessoa. Porque, e disso tinha a certeza, aquele animal nunca o magoara e jamais o iria fazer.
O centenário carvalho da praça, no qual ele, o seu pai, o seu avô e sabe-se lá mais quem, andaram no baloiço (que ainda hoje lá se encontrava), começara há pouco tempo a ganhar os primeiros rebentos, quase como se ressuscitasse da morte em que parecia ter enveredado. O baloiço, esse, era já um ramo da própria árvore. Quase como que um velho que acolhe uma pequena criança para que possa sentir perto dele toda a festa que caracteriza o petiz. E o coreto... Como se poderia esquecer do coreto? O sítio onde sempre tocara na banda, fazendo as pessoas soltar aplausos que tanto o reconfortavam. Que lhe despertavam aquele arrepio só ao alcance dos que se fundem com o instrumento e que chegam com ele ao céu. O coreto, atrás do qual se escondia quando brincava às escondidas com os amigos. Esconderijo que só ele conhecia e no qual nunca ninguém o achou. Ganhava sempre. E gostava de o fazer.
Muitas crianças passaram naquela praça. Conhecia-as todas, viu-as crescer, partir, desaparecer. Riu e chorou com muitas das travessuras que pequenos e graúdos fizeram à frente da sua janela, principalmente em dias como aquele... Lá em cima, o sol fugira. Inclinou-se para olhar um pouco melhor e ver o primeiro floco de neve que descia triunfalmente sobre a praça já deserta. As crianças, já encharcadas, haviam voltado a pedido das preocupadas e zelosas mães. O pardal esvoaçara dali. Não sabia para onde nem tal facto lhe interessava. Até o próprio baloiço, que até há instantes atrás gingava ao sabor da brisa que corria, decidiu parar para que se visse começar a nevar de novo. De repente, atrás do coreto, surgiu o seu gato amarelo. Despreocupado, deu uma corrida decidida e foi-se sentar no banco onde tantas vezes fora acariciado. Virou-se para a janela. Ao vê-lo no seu banco e relembrar aquele cenário no qual participara durante tantos anos, ele sorriu por trás das vidraças. Cansado, mas ainda a sorrir, fechou os olhos.

E foi nesse dia qualquer, em meados de um mês de Inverno cujo ano já não me lembro, atrás da sua vidraça que dava para a sua praça com todas as suas coisas, e sentado na sua cadeira de madeira que rangia, que ele fechou os olhos alegremente. E não mais os abriu.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Adeus

Por favor, não me perguntes porquê... Eu já bebi esse veneno que contigo vem mascarado. Essa armadilha que tão imbecilmente já pisei. Eu sei como é. Como iria ser. Já o vivi. E não gostei.
São impressionantes as semelhanças... em tudo. Como ingénuo (ou simplesmente sonhador) pouco devia faltar para voltar a ir com a maré. Mas desta vez não embarco. Posso-me enganar, mas quase que adivinho que a terra prometida não estaria do outro lado. Lá ao longe somente um enorme remoinho de água, de vento, de tudo. Um remoinho que mistura tudo e de onde nada sai. Já lá estive. E não gostei.
Por isso te peço: não me perguntes porquê. Se eu te explicasse nunca o irias entender. Não irias ter capacidade para o fazer. Eu vejo determinadas coisas que por mais que tentasse explicar, que outras pessoas também te tentassem mostrar, tu jamais as entenderias. Não és burra. Muito longe disso. Mas, simplesmente, não irias perceber. Só eu sei o que me custa fazer ou dizer isto. Mas ir-me-ia custar muito mais depois. Já o senti. E não gostei.

Por isso, antes que te diga olá, digo-te adeus...

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Puzzle

Quando duas peças de um puzzle não encaixam é porque uma delas não está no sítio certo. Poder-se-ia cortá-la até que encaixasse. Talvez fosse toda cortada e nunca servisse... Até poderia vir a servir. Mas já não era a mesma peça que não encaixava no início. Tinha perdido o seu sentido, a sua forma, a sua identidade, a sua função. Tinha-se perdido nela própria. Só para encaixar nas outras que a circundavam.
Eu não encaixo aqui? Desculpem-me, mas não me vou recortar até encaixar. Algures, não sei onde, há de haver o meu lugar. O meu lugar único neste puzzle... Uma certeza tenho: não me vou perder em mim mesmo, porque aqui não encaixo. Não é aqui que pertenço. É ali.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Atlas



O meu Atlas até pode parecer frágil. Mas de certeza que não parte com o peso de tudo o que o rodeia. E mesmo que parta, sei que haverá alguém que o agarrará e não o deixará cair. Amo-te.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Espelhos

A única maneira de nos vermos é no espelho. De nos vermos por fora. A nossa cara, o corpo, .... E quem consegue ver o que está dentro de nós? A nossa maneira de ser? Aquilo que temos de bom e o que temos de abominável? Para isso não há nada melhor que os outros. Aqueles que nos conhecem, que lidam connosco e que nos vêem de uma maneira que nós jamais seremos capaz de atingir. Não existe melhor espelho que eles.
Vermo-nos através desses espelhos mostra-nos coisas que, gostando ou não, nos tornam tão mais enormes. Só por termos uma maior consciência de nós. Não tiraremos mais sucesso da vida se nos conhecermos a fundo e vivermos de acordo com esse saber?
O problema é que muitas vezes esses espelhos não nos dão reflexo. Apesar de terem reflexo. Só que aprisionado dentro dos próprios espelhos. Nós estamos em frente ao espelho e sabemos que nos estamos a ver através dele. Só não sabemos o quê! O que é que o espelho mostra de nós? O quê?
Mas em ti vejo tudo, em todo o lado. Nos teus olhos quando me olhas, nos teus lábios quando me sorris, na tua boca quando me beijas, nas tuas mãos quando me tocas. Nem precisas falar. Reflectes-me na tua mais ínfima existência. Sei que não sou perfeito. Mas graças a ti consigo gostar do que sou. Tenho defeitos que me mostras sempre que os exponho. Tenho virtudes que me mostras quando preciso de força. Hoje sou mais eu graças a ti. Por me teres mostrado a mim próprio. Por me teres reflectido quando todos os outros não o fizeram. Por ainda hoje o fazeres. Por ter a certeza que o vais continuar a fazer. Para sempre...

domingo, fevereiro 05, 2006

Falta de comparência

A vida é feita de competições constantes. Não se vai a lado nenhum se não se for capaz de vencer umas quantas. De preferência as mais certas. Mas há competições que não me interessam minimamente...
Quando, sossegado no meu canto, vejo alguém falar-me já sei o que lá vem. Curioso... É época de exames. Pessoas que não conheço de lado nenhum (a memória visual não conta para o efeito) tratam-me como se me conhecessem há milénios. "Ah e tal, não percebo isto", "Coisa e meia, é esta a resposta?"... Está bem. Sou inteligente. E depois? Não tenho culpa! Sinceramente, muitas vezes gostava de não o ser. Gostava de não ter nenhuma mais-valia. Saberia assim que os que me cercam não o fazem por oportunismo...
Mas pior dos que os amigos de exame, são aqueles que batalham para serem melhores que os outros. Perguntam-me se os exames correm bem e ainda não acabei de responder já me estão a perguntar a nota. Vejo-lhes nos olhos um secreto desejo de ouvirem uma nota inferior à deles e poderem depois dizer "Tive mais que tu". Um desejo de se verem por cima. De verem os outros em baixo. De criarem uma competição de tudo. Criam um campeonato como se a vida deles disso dependesse. Mas eu com esses não compito. Porquê? Não faço parte do campeonato deles. Não que eu seja melhor que vocês ou vocês melhor que eu. Não participo nesses duelos porque não quero. Não, também não tenho medo de perder. Simplesmente o meu campeonato é comigo próprio. É a mim que eu tenho de me bater. É a mim que eu tenho de vencer, derrotar, esmagar, aniquilar, superar. Só a mim. Insistem em competir comigo? Tudo bem. Ganharam... por falta de comparência.
O que me consola? Ainda há pessoas que me perguntam "Como correu? Estás a ver? Eu sabia que te ia correr bem". E eu vejo que ficam contentes só por saber que correu bem. Porque uma pessoa é mais do que 1 ou 2 dígitos. Mais que um valor. Mais que escola. Uma pessoa, antes disso, é uma pessoa.