quinta-feira, outubro 02, 2008

Tela

Na minha mente tenho uma imagem demasiado nítida. Um desenho bem vincado. Uma pintura perfeitamente minha.

Ao fundo uma falésia negra como o breu de uma noite escura. Xisto no seu estado mais bruto e animal. Sem qualquer correcção ou aperfeiçoamento. Irregular, farpado e ingrememente assustador. Cortante. Inescalável. Demasiado alto. Demasiados metros impossíveis de vencer e que se reduzem, em baixo, a um miserável e curto areal. Liso, nu e curto porque o mar assim o determina sem vontade mas com propósito. Sem marcas, conchas ou sinais de vida. Um manto que tapa outros tantos iguais a ele que se escondem sob o seu repouso. Um tapete cheio de nada e repleto de areia dispersa aleatoriamente de acordo com a vontade do vento que ruge escarpa abaixo em direcção ao mar. Que rasga o xisto tal como rasga a água até que eu o perca de vista. Fundindo-se em turbulências com o mar que enche todo o lado direito da minha visão. Não lhe sei a cor mas sei que é mar. Porque o seu cheiro está na tinta da tela e as suas gotas na palma da minha mão. Sei que tem ondas maiores que a falésia e que essas mesmas ondas rebentam com estrondo, partindo-se em estilhaços suaves nas suas próprias bases que encharcam a figura imponente e impenetrável ao centro de tudo.

Uma figura preta de cima a baixo. Um homem jovem e gasto, cujos 180 centímetros de altura e os poucos quilos de peso se encontram de costas para os meus olhos. Os sapatos são simples, nada brilhantes e de sola escassa. Os atacadores atados à pressa e já resvalados, arrastam-se soltos e apressadamente de forma milimétrica atrás do passo. Das calças apenas se adivinha a bainha em torno dos tornozelos, de tão escondidas que estão sob um sobretudo enorme e já ruço de toda a porcaria em que se roçou. É liso, moldado pelo ar em movimento que o empurra sem dó em direcção indefinida, e tem dois bolsos à altura da cintura que alojam as mãos esguias e desprovidas de qualquer músculo que as sustenha estoicamente erguidas contra qualquer tipo de força, por mais mínima que seja. A cor deste manto só encontra rival em toda o quadro na total ausência de cor do cabelo curto e cuidadosamente revoltado com o qual a sua gola alta e aberta se continua. A cara sei eu como é. Não preciso de a ver para a adivinhar. Velha e com a barba por fazer, não muito comprida. Suficientemente crescida para dar o ar de vagabundo despreocupado que gostava de cultivar perante os outros que não se interessavam por ele. Olhos vazios de alma que fitam a biqueira dos sapatos enquanto os pés alternam na posição de destaque do campo visual, destaque que nenhum ser alguma vez se dignou a conceder-lhe. Uma boca inexpressiva e fechada, guardando tudo o que todo o interior quer gritar de dor e agonia a todos os que o feriram. Uma expressão acabada, desiludida e resignada com a vida. Como o percebo? Não faço ideia. Não sei o que é uma expressão acabada, desiludida e resignada. Mas aquela era-o sem qualquer hesitação. Tal como a marcha. Decidida, embora cambaleante. Trôpega mas com destino. Tão leve que não marcava a areia. Tão forte que não se deixava levar pelo vento. Tão imponente que não era possível de ser arrastada com o mar. Tão ignorada que carregava este vulto, sem ninguém dar por isso, até ele se confundir com a falésia de xisto. Até só eu o ver e saber onde ele estava. Porque ainda é possível distinguir a sombra da escuridão.

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